A semana passada foi meio parada em termos de procedimentos mas eu tive duas experiências muito distintas com pacientes na UTI.
Primeiro vamos ao Sr. Brasileiro paciente do leito 12.
Depois de ter sido admitido na UTI por:
1) Complicação da cirurgia de retirada de um câncer de sigmóide (no intestino)
2) Abcesso hepático (sim, quer dizer pus no fígado!)
3) Ter tomado todo tipo de antibiótico, inclusive 2 ciclos de polimixina (antibiótico usado em últimos casos)
4) Ter tido uma lesão iatrogênica (provocada) na uretra na colocação da sonda vesical (aquele negócio que colocam na gente pra urina sair direto pra um saquinho)
5) Ter feito uma cistostomia (um orifício é feito na barriga na altura da bexiga para que a urina seja drenada por ali)
6) Ter tido dois pneumotórax (ar no tórax fora dos pulmões, o que os comprime) também iatrogênicos por punção de acesso central de subclávia bilateralmente e ter tido os dois hemitórax drenados por isso 7) Foi intubado e depois traqueostomizado passando muito tempo em ventilação mecânica
8) Por último uma cultura de bactérias retiradas dele deu um Enterococo vancomicina resistente (ou seja, uma bactéria que até os antb. mais fortes não matam) deixando o "póbi" em isolamento de contato.
Ufa! Esse pobre coitado deixou muitas vezes, durante os seus noventa e poucos dias de internamento na UTI, médicos, fisioterapeutas e auxiliares sem esperanças de um dia vê-lo sair dali vivo. Durante as duas semanas que acompanhei sua evolução vi esse homem arrancar várias sondas nasogástricas (aquelas que são usadas pra alimentar), sair da ventilação mecânica e ficar só com o traqueóstomo, até ficar completamente livre de artifícios para respirar.
Como eu já disse, ele tinha que ficar em isolamento de contato, ou seja, todas as pessoas que fossem ter contato com ele tinham que estar usando batas, luvas, gorros e máscaras, descartando tudo isso após o uso para não contaminar mais nenhum outro paciente, portanto não poderia voltar para enfermaria normal, somente para uma específica.
Fala dali, conversa de lá, chora um pouquinho dacolá e finalmente consegui que ele saísse da UTI! Leito de isolamento na enfermaria para não disseminar a bactéria e tive o prazer de ser a interna que conseguiu fazer com que ele saísse de lá! Poder desejar tudo de bom pra ele e ter o prazer de ouví-lo responder (porque com traqueostomia não se pode falar) foi um grande prazer, pode ter certeza!
O segundo paciente foi o Sr. Luís. Está na UTI já há quase um mês no leito 11 por:
1)Insuficiência hepática aguda (já resolvida)
3)Insuficiência respiratória
4)Insuficiência cardíaca (FE=24%) - miocardiopatia dilatada secundária ao problema hepático (quer dizer que ele tem o que se chama de coração crescido) Esse paciente estava na UTI pelo seu problema hepático e por algum motivo, ninguém havia atentado para o seu problema cardíaco, não sei se descaso de quem o admitiu na UTI que não o avaliou direito, ou se o esquema de plantões de 6h que não deixa que você tenha muito tempo de avaliar o paciente vendo o indivíduo 1x na semana. O que interessa é que só após vários dias internado na UTI foi que a residente que lá estava achou estranho que ele ficava muito cansado sempre e com uma dispnéia constante (frequência elevada e desconforto respiratório). Verificando o prontuário dele ela encontrou exames que relatavam sua doença. Começou a tratá-lo para a IC (insuficiência cardíca) com uma droga que chama dobutamina que faz com que o coração tenha mais força para bombear o sangue. Ele ficou estável, mas a retirada da droga ficou muito difícil, pois ao retirarmos ele piorava muito.
A residente foi embora pra SP e o médico a respeito do qual eu falei no primeiro post, que tinham me feito medo, na sexta orientou-me a fazer o desmame da dobuta mais lentamente ainda começando na segunda. Passei o fds todo sonhando com esse desmame acredita?
Qual não foi a minha surpresa que quando entrei na UTI na segunda de manhã me deu um aperto no peito de ver que o seu Luís estava entubado. Na madrugada de domingo pra segunda ele fez uma FA (fibrilação atrial) de alto débito (uma arritmia cardíaca) com frequência de 200 batimentos por minuto não conseguindo manter o padrão respiratório. Foi necessária a intubação para garantir a vida dele. Hoje ele está ainda intubado, com duas drogas vasoativas, a dobuta e a noradrenalina (pra ajudar na pressão), na ventilação mecânica, com um provável choque cardiogênico. Como é estranho você começar a conviver com aquele paciente, falar com ele todos os dias, criar aquela empatia por ele e de repente chegar e ele estar tão ruim que você tem certeza que ele não vai sair vivo dali.
Semana de sair de uma grande alegria de ver um paciente melhorar ao ponto de sair bem de lá ao outro extremo, ver um outro pct que estava bem e falando, estar dependente dos aparelhos praticamente sem perspectiva de sair de lá vivo.
Sentimentos muito distintos que infelizmente vão coexistir sempre e todos os dias na vida de quem escolheu esse sacerdócio, como diz minha mãe, como meio de vida.
A medicina não pode ser encarada como um trabalho, tem que ser um compromisso com o outro, caridade com quem precisa, porque se não for assim, a humanidade que é necessária para exercer essa profissão se perde e aí temos os médicos irresponsáveis, frios e sem coração que tanto vemos por aí.
Ser médico é deixar de olhar só pra si e voltar-se para o que necessita. É entregar sua vida e seu conhecimento a quem precisa.